Os jornais semanalmente noticiam episódios de violência contra a mulher. No Brasil, foram 4 feminicídios/dia em 2022, que se somaram aos 66.020 estupros de 2021. Os números são obscenos. Múltiplos, repetitivos, escancaram o comportamento de quem se sente à vontade para espancar, matar, estuprar mulheres e meninas, nas ruas e dentro das casas. Isto é um problema de gênero, respeita ao feminino, e não admitir seja isso um problema de gênero, é negar fatos. Nós sabemos, por tantos relatos, estudos, reflexões, estatísticas, casos policiais e jurídicos que é. E então cabe a pergunta: Por que é um problema a questão de gênero? Um problema é uma assimetria, um desconforto, um desajuste, ou uma dor que se desvela pelo tanto que de dor causa no outro. Então, cabe buscar no único lugar capaz de dar respostas, sem que estas respostas necessariamente passem a ser soluções. Esta clareira onde se busca é a História, que vamos desdobrando.
As noções de mulher e homem nascem de um mesmo ponto originário: a fé no mito, mais tarde substituída pela fé na razão, ambos instrumentos de um modo de estar, pensar e sentir o mundo que transpassa toda a história do Ocidente e que se pode chamar de ethos, palavra grega que significa lugar onde se vive, costumes do lugar, modo de pensar e agir, ou seja: caráter. O que se está dizendo é: existe um núcleo ético, um caráter nas nossas origens de gênero (sim, vamos usar a palavra demonizada), e é desta discussão que precisamos nos ocupar, enquanto seres humanos.
A questão “gênero” encontrou (e encontra) expressão a partir dos anos sessenta, setenta, no Brasil. Dizer que encontrou expressão significa dizer apenas que encontrou um canal para falar de casamento, sexualidade, família, contracepção, criação de filhos, trabalho, aborto, violação da dignidade pela injúria, pelo estupro e pela morte. Mas essa questão não passou a existir nas décadas de 70/80. Historicamente, foram as mulheres que garantiram àquelas que vieram depois o direito de afirmar sua trajetória individual – vide o voto, o ingresso em carreiras tidas como masculinas, a participação política etc., apenas na aparência desvinculada de qualquer construção coletiva.
Todavia, embora a História nos seja apresentada como “sucessão de etapas, em que a posterior é sempre, ideologicamente superior a anterior”, o fato, se quisermos ser honestos, é que a história é evento permanente – O passado nunca morre, disse o escritor americano Willian Faulkner (caráter receptivo do presente). Então, desde quando se pode falar de questões de gênero? E por que, no Ocidente, gênero se torna um problema? Pode-se falar de questões de gênero desde sempre, ainda que não com este nome, na tradição do Ocidente, entendido aqui como estrutura ideológica resultante da fusão entre o Império Romano e o Cristianismo (que fez o resgate, a releitura e a apropriação da filosofia grega produzida na Antiguidade Clássica). Há que se dizer que este núcleo duro que constituiu a tradição ocidental, e, portanto, nos constitui, permitiu que um gênero dominasse outro: homem dominante/mulher imanente. Primeiro pelo mito, depois pela razão.
Olhemos primeiro para a civilização grega, cuja cosmogonia revela a existência do múltiplo e conta da criação da mulher: No início era o Caos, e nele surgem Urano (Céu) e Gaia (Terra) abraçados, a Terra a parir filhos sem parar; ela pede a seu filho Kronos que os separe, o que este faz usando um podão. Kronos toma o lugar de seu pai, e para evitar o mesmo destino, engole todos os filhos que têm. Até que sua mulher esconde Zeus, que por sua vez destrona Kronos e se torna o deus dos deuses, estabelecendo a ordem e “a partilha das honras”. Nessa mitologia, Caos – o múltiplo, desaparece ao dar origem ao novo, uma ordem que cria primeiro os animais e depois, para diversão dos Olímpicos, o homem, um ser sem qualidades que precisou do fogo para sobreviver, roubado por Prometeu. Os deuses castigaram os homens com Pandora, a primeira mulher, a que espalhou os males no mundo.
Mas cerca de 1000 anos antes de Cristo, em outro local, no Oriente Médio, outra cosmogonia já se forjara, a dos hebreus, de viés monoteísta, e da qual surgiram três grandes religiões semitas, todas expansionistas, nascidas do mito da infertilidade de Sara, mulher de Abraão. No Judaísmo e no Cristianismo há a figura da mulher como responsável pela queda do homem, Eva, essa pecadora primordial…No Judaísmo, Abraão teve um filho com sua esposa Sara, chamado de Isaque e que foi pai de Judá. No Islamismo, Abraão teve um filho com uma serva (Agaar), chamado Ismael. No Cristianismo, há uma linhagem de personagens masculinos: Abraão, Isaque, Judá, Davi, Jesus. O Cristianismo é uma cisão do Judaísmo, surgido a contar do século I depois de Cristo, pelo trabalho dos apóstolos. Jesus se apresenta e é aceito como o messias prometido, aquele que viria purgar os pecados da humanidade, realizando a aliança entre Deus e Abraão. Jesus questiona o Judaísmo (preocupado com jejum, corpo, observância do sábado, com as questões de poder), discute com os sábios no templo, questiona a riqueza e a subordinação do judaísmo aos interesses do Império Romano. Esse discurso faz sucesso entre mulheres, escravos, pobres, atestando o caráter explosivo, social e político da nova crença, única opção de consolo dos miseráveis. Não mais a religião doméstica, dos altares aos antepassados ou aos deuses comuns. Mas a promessa – essa palavra é importante – de uma vida de paz após a morte. (hoje se promete vida plena aqui mesmo, basta fazer uma oferta em dinheiro). O Cristianismo não rompe com nada que lhe antecede, muito pelo contrário – expansionista, ele incorpora interesses humanos e práticos. Por exemplo, os cristãos não se opuseram, nem naquele tempo, nem mais tarde, à escravidão (o fim da escravidão nunca foi bandeira de nenhuma religião)
O Cristianismo foi a síntese entre a tradição hebraica e a Greco-romana. Dos hebreus, a crítica social, o monoteísmo e o Velho Testamento como a Palavra de Deus, de onde se busca no Gênese a permissão para o Ser do homem e a culpa de Eva. Criado à imagem e semelhança de Deus, ele é “naturalmente superior” à mulher; esta é um reflexo, uma imagem secundária. Ao mesmo tempo, o Cristianismo se apropriou da filosofia clássica grega, para, apoiado na razão (lógica), tornar acessível a verdade revelada aos homens. A filosofia se converteu em teologia, em textos que deram suporte teórico para a Igreja evangelizar. Santo Agostinho recuperou Platão e o seu paradigma de estado ideal – para Platão, não havia em nenhum lugar, “nem aqui, nem agora”. Para Agostinho havia um lugar para esse Ideal – o lugar era “Deus, e com ele, as ideias platônicas se transformaram nos pensamentos de Deus. E, se pelo nascimento a alma do homem era aprisionada pelo corpo, então, como não se apropriar e submeter ao poder do homem o corpo responsável pelo aprisionamento da alma, o corpo feminino? Santo Agostinho considerava natural a sujeição da mulher ao homem (legitimação da violência), ela usará o cabelo comprido em sinal de obediência e submissão. O fato é: a Igreja usou a filosofia clássica para legitimar o seu poder temporal: a crença no Uno, no “Um”, unidade totalizadora da qual tudo decorre, o SER: Deus, homem; criacionismo. Apoiada por imperadores, a Igreja acumulou influência a ponto de por mais de mil anos manter as relações sociais sob sua influência, o que passa pela disciplina do casamento, da legitimação dos filhos, da sucessão, da viuvez, do trabalho (tudo que respeita à esfera privada), pelo surgimento da ideia de Europa e a transformação desta em “centro do mundo”, com o advento da “Modernidade”. Então, se pode dizer que esse Ser-no-mundo que nos constitui, age e se faz presente pela sua ação, constituída na experiência existencial.
E como este agir do SER se revela? Ele é arbitrário nas escolhas/supressões, conquistatório e expansionista, “eu” egoísta, homem único (no sentido de que não há feminino de homem), individualista, branco, predatório. Basta olhar como ele se relaciona com o outro, outro este que é tudo fora dele: a natureza, a mulher, o gay, o negro, o escravo. Esse ethos: visão de mundo, forma de pensar e agir, caráter, é incompatível com as novas promessas feitas: lembrem-se, a crença na vida plena após a morte foi substituída no discurso da Modernidade por Igualdade, Fraternidade e Liberdade. Mas se há tamanha diferença entre o ethos e as promessas, como a tensão entre eles se resolve? Em uma forma de controle que permite a convivência mas não nega o ethos, chamada de contrato social, nas suas diversas formas: basicamente Estado/Direito (o que já é outra conversa)
Então, respondendo a pergunta inicial, porque gênero é problema ainda hoje: porque o passado nunca morre. O Ser jamais se demite de seu evento, da sua historicidade, do seu caráter, do seu ethos. Se a história fosse linearidade, sucessão e superação, os textos literários, filosóficos, musicais, cinematográficos, gráficos, teriam desaparecido nas brumas. E isso não ocorre porque eles dizem sempre e sempre da nossa condição. E assim será porque as instituições que deveriam se ocupar dessa superação – Estado/Direito, educação, política – não agem nessa direção; elas são as pessoas dentro delas, e portanto, também agem movidas por escolhas/interesses/supressões. A arte vem a séculos nos mostrando (e a nossa violência) a nós mesmos. Nós é que teimamos em não enxergar. Vamos continuar falando de gênero, sim. Porque se na década de 60 queimaram sutiãs, hoje são necessárias outras performances e a denúncia sem concessão. Devemos nos escandalizar é com os números. Dos assassinatos, das lesões corporais – de leves a gravíssimas, dos estupros. Nossa hipocrisia se sente agredida com as reivindicações femininas. Nossa indignação deveria se voltar ao agressor, que urina em público, fala e pratica obscenidades nas ruas, no silêncio das casas, nas redes sociais e dentro do Parlamento. Quando discursos não tocam a alma, é necessário o incêndio. Que o fogo seja o do relato, da denúncia permanente do que na verdade é abjeto.