Os eventos políticos, enquanto acontecimentos que mudam o rumo da história de um povo, merecem ser objeto de reflexão por parte de cada um de nós. A memória reclama sempre a conservação dos fatos, para que se possa deles tirar lições que nos guiem. Um desses eventos da história brasileira é a Proclamação da República. Para falar conosco e com nossos leitores sobre a data, convidamos o Prof. Dr. Edgar Gandra, professor de História do Departamento de História, e do Programa de Pós- graduação em História da Universidade Federal de Pelotas.
1. O que foi a Proclamação da República? É verdadeira a afirmação de que “o Exército era maltratado”? Qual o espaço para a participação popular na movimentação?
A Proclamação da República termina um processo de desestruturação do Império, sobretudo da perspectiva simbólica do Império. Havia praticamente um consenso, devido a várias questões, inclusive o aspecto que a elite brasileira começava a entender o Império como entrave à sua própria estruturação enquanto poder de fato no país, e que após o falecimento de Dom Pedro II, o melhor caminho seria a Proclamação da República. Havia em certo sentido um respeito simbólico por Dom Pedro, mas havia um certo consenso [em torno da república], inclusive com a emergência do Partido Republicano. Nesse sentido, o que foi a Proclamação da República? Foi um Golpe de Estado, feito por Deodoro e parcela do Exército, que tomaram o poder e expulsaram a família real. Havia todo um debate desde a segunda metade do Séc. XIX, sobretudo desde a Guerra do Paraguai, quando e qual o papel do Exército, quando seria reconhecido e qual seu papel. Então essa ideia de “maltratar o Exército” é apenas em parte, porque parte do oficialato tinha excelentes relações com o Império. Então não se pode generalizar. Mas o que havia, isso sim, é um descontentamento, sobretudo de setores das classes dominantes do país sobre a relevância ou não do papel do Império. Nesse sentido, alguns problemas políticos, sobretudo no Rio de Janeiro, algumas questões que afetavam a honra, no entendimento de Deodoro e de outros militares, do papel do Exército, levaram a esse golpe. Deodoro mesmo efetivou o golpe de forma muito relutante, ele tinha um certo apreço, só quando ficou sabendo que Dom Pedro estava na sua casa em Petrópolis, e que ele iria nomear um desafeto político do mesmo como chefe do Gabinete dos Ministros é que se efetivou o golpe. O golpe mesmo já era pregado por Benjamin Constant e outros militares de Patente média, mas que ao fim e ao cabo foi feito por Deodoro, que era uma grande referência no Exército brasileiro. Mas foi um Golpe de Estado, e a participação popular, em um primeiro momento [não existiu]; tem um livro de José Murilo de Carvalho, chamado “Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.”. Apesar de haver uma certa influência de setores médios da população do Rio de Janeiro, a grande parte da população não participou, o povo assistiu “bestificado” a Proclamação da República, ou seja, sem entender direito o que estava acontecendo. E se a gente imaginar os critérios de comunicação daquele período, em alguns lugares, por exemplo, Mato Grosso, só vários dias depois, provavelmente um mês, que “descobriram” que havia um processo de independência. Então foi um Golpe de Estado, o golpe foi consolidado e a gente teve um governo provisório. Mas o que realmente derrubou a Monarquia foi que ela já estava sem prestígio, sem base para continuar.
2. Quem, entre eles, comungava ideais republicanos, na medida em que se sabe que Deodoro da Fonseca era um monarquista? Alguma motivação religiosa?
Deodoro não era bem um monarquista; ele era basicamente um conservador que tinha uma boa relação, no sentido de apreço, com Dom Pedro. Mas a gente não pode dizer que ele era monarquista; havia oficiais monarquistas, sobretudo na Marinha, ela era entendida como a mais aristocrática das forças, até porque vários filhos da elite e da nobreza ingressavam nos portos, o Exército tinha uma característica, por óbvio, mais popular. Mas se vocês pensarem bem – por quê? – porque a grande parte – tirando a alta oficialidade – a grande parte da elite fundiária, que tinha condições financeiras e sociais, estava com postos na Guarda Nacional, que era uma guarda fundada, e tinha posto até de Coronel, e esses sim, desempenhavam papeis importantes. E volto a dizer, houve um agravamento da questão religiosa, sobretudo na figura do padroado – Dom Pedro tinha a possibilidade de nomear bispos, porque a Igreja fazia parte, de forma muito concreta, do Estado Brasileiro; o governo era quem pagava salários, essas questões do gênero. Então, dentro dessa perspectiva, no momento em que Dom Pedro II protegeu alguns bispos, sobretudo na questão da maçonaria, foi também desprestigiado pela questão religiosa; mas enfim, conforme falei antes, o Golpe da República, conforme falam diversos historiadores, foi motivado mais por questões políticas momentâneas, um processo curto, ali.
3. A busca pelo poder é uma luta legítima, pode-se pensar, e a relação entre poder e violência, uma certa constante. O senhor considera legítima a ruptura com a ordem vigente, levada a cabo por alguns militares, ainda que não se tenha dado um tiro, no dia 15/11/1889?
Essa pergunta três é muito interessante, porque a gente percebe, desde o período da República, sobretudo da Proclamação da República, essa questão da violência, e essa ideia salvacionista das forças armadas. Então, se a gente pensar bem, essa ideia de golpe é uma ruptura rápida, e mesmo que não se tenha dado nenhum tiro, foi uma ruptura na ordem constitucional. Isso se dá de forma muito complexa por uma ausência de sensação de participação e cidadania, de grande parte da sociedade civil brasileira. Isso é um fenômeno, Ângela de Castro Gomes diz que a nossa cultura política é marcada por este fenômeno – ela é uma historiadora importante – que é marcada por esse fenômeno da falta de respeito pela democracia, pela falta de respeito pelos ritos. Se a gente olhar na história brasileira, vários golpes aconteceram, várias tentativas aconteceram; então há uma falta de respeito, há uma falta de profundidade no conceito de respeito à norma e de respeito à cidadania brasileira. Isso faz com que indivíduos que monopolizem ou tenham maior contato com o poder, acham que em caso de crise política a melhor solução é um “levantamento”, e um levantamento sobretudo por parte dos militares, que detém a força militar para fazer esse tipo de ação. Então a gente vem em constantes momentos, a gente vai ver golpes e contragolpes em quase todo momento da trajetória brasileira; há uma certa, vamos dizer assim, falta de comprometimento com a democracia, e incrivelmente, na nossa ordem política, parece que essa ideia de ruptura, ou de não seguir os ritos, ou de não respeitar a democracia, faz parte de uma cultura complicada para nós, porque nos deixa sempre a um passo do autoritarismo, e isso é muito complicado.
4. A promessa, enquanto “modo exclusivamente humano de ordenar o futuro, tornando-o minimamente previsível”, se faz sempre presente em momentos de ruptura? A quem e quais foram as promessas feitas naqueles dias? A quem interessava a queda da monarquia?
Essa pergunta é muito interessante, na medida em que parece que o Brasil é sempre o “país do futuro”. É o “país do futuro”, e parece que numa resposta rápida tem soluções, e que alguém pode salvar, a ideia do “salvador da pátria” é muito recorrente. O que que a gente tem de presente? Todas as ideias levantam bandeiras, como “sanar a corrupção”, “desenvolvimento econômico”, “melhoria do país”, “sanear a economia”, “desenvolvimento”, “desentrave”, “modernização”, eram as palavras da época (grifos nossos). Mas se a gente pensar, bem em seguida do processo de tomada do poder, houve alguns anos tumultuados, com a Revolta da Armada, a renúncia do Deodoro; Floriano Peixoto, que era um vice que não tinha boas relações com Deodoro, assume o poder e de certa forma a gene percebe que foi um período tensionado, que depois, setores que já eram hegemônicos no período do Império, retomam o poder na primeira eleição civil após esse período dos anos iniciais da República. Nesse cenário, o que a gene percebe? A gente percebe que, apesar das promessas, para qualquer ação política, a maior parte das vezes elas são apenas um verniz para a ação desses setores que buscam consolidar seus interesses. O que a gente vai ter depois? A gente vai ter uma república de “PRs” – acabam-se os partidos nacionais e a gente pega partidos estaduais; aqui no Rio Grande do Sul, o Partido Republicano Riograndense; em São Paulo, o Partido Republicano Paulista, o Partido Republicano Fluminense etc. E esses partidos estadualmente vão fazer “círculos concêntricos” de distribuição do poder, e o que a gente pode ver é que ficou muito caracterizado um certo patrimonialismo, quer dizer: o Estado é patrimônio de alguns; tem um texto do Raimundo Faoro, lançado já na década de 50 que fala nos “Donos do Poder”, que faz um mapeamento desse cenário. Então, apesar das promessas, a gente percebe que em raros momentos há uma preocupação maior com o coletivo. Aliás, nesse momento, a própria ideia de “brasilidade”, não existe. Meu vínculo com o poder era “com qual poderoso eu me relacionava”, então era, enfim, a minha relação com o Brasil era o vínculo com “qual padrinho político eu tinha”, coisas do gênero. A gente só vai ter uma ideia de cidadania depois do Período Vargas, que é interessante, tanto é que tem um processo de “nacionalização”, que começa a se estabelecer isso. Então o vínculo com o poder é um vínculo de relações pessoais, que até hoje a gente tem, de certa forma, essa figura do apadrinhamento político. De mudanças, houve vários discursos, a gente tinha, por exemplo, grupos republicanos, sobretudo vinculados à ideia do Comte, de uma “ditadura republicana”, a gente vê Benjamim Constant, um pessoal vinculado à Escola de Formação de Oficiais, intelectuais nesse sentido, mas ao fim e ao cabo o que ficou é uma proposta de uma república oligárquica, a figura de uma “república café com leite”.
5. Que lições, a tirar do evento? A que o senhor credita a existência de movimentos que buscam a restauração da monarquia, no Brasil?
Bom, essa pergunta é muito vinculada a um certo saudosismo, uma ideia de estabilidade que se tinha no período republicano, restaurar a monarquia”, uma ideia de conservadorismo. É complicado isso porque dá uma ideia de que o passado era melhor, um saudosismo, nesse sentido. Mas na verdade tem um aspecto que se a gente pensar, vai ser na Monarquia que a gente vai ter o ápice da escravidão, a gene vai ter o ápice desse processo de exclusão social, e a figura de um monarca, bonapartista, com poder moderador, não resolveu os problemas de uma forma concreta do Brasil. Apesar de vários estudos mostrarem uma postura um pouco mais progressista da realeza, sobretudo de Dom Pedro II, ela esbarra no cenário das estruturas sociais do Brasil vigente. Então essa ideia de um saudosismo é muito complicada, porque dá uma ideia como se aqueles tempos fossem bons; então a gente tira todo o processo de convulsão, das revoltas, escravidão, os problemas sociais, da concentração de renda, da clivagem de classes. – nobres e plebeus, e coloca como um tempo de estabilidade, bom, em que a gente tinha um grande pai cuidando da nação, esse é o discurso, que é extremamente complicado. Mas fica de lição essa necessidade de a gente fazer uma releitura do passado, da gente fazer encontros com o passado, de a gente entender a complexidade desses períodos, e como eles deixam marcas. Um dos problemas é esse que coloca essa pergunta, esse “saudosismo”; esse saudosismo se dá em grande parte por falta de conhecimento, e a falta de conhecimento se dá porque a gente não discute de forma aprofundada os problemas. Não há problema em escolher ser monarquista, mas para fazer esta escolha a gente tem que entender qual é a carga, o que isso traduz, vamos dizer assim, toda a perspectiva histórica que traz a partir daí. De lição fica, de longa data, a ausência de uma participação mais efetiva da sociedade civil, e de uma inclusão mais intensa do povo brasileiro no cenário da política.