No dia 28 de abril comemoramos o “Dia Internacional da Educação”. Mas a data exige é que se discuta a educação no Brasil, principalmente quando estamos diante do Novo Ensino Médio. Entrevista com o Professor Dr. Evandro Luís Gomes.
“Eu considero o novo ensino médio uma pá de cal na formação dos jovens, com todas as consequências que isso traz para a sociedade, inclusive na economia. Se temos o desafio de modernizar as relações, as técnicas e os processos produtivos, não há vantagem em um indivíduo mais mal preparado. Isso é insano.”
Prof. Dr. Evandro Luís Gomes
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá. é Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2002) e Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2013), concentrando sua pesquisa em história e filosofia da lógica com ênfase na pesquisa histórica dos métodos, teorias e sistemas lógicos tanto clássicos quanto não clássicos.
1. O Brasil, de um modo até frequente, implementa reformas educacionais. A reforma de 1971 tornou obrigatório o “ensino profissional” para atender o processo de industrialização do “milagre econômico”, formando trabalhadores qualificados como “técnicos em”, cuja continuidade dos estudos, no nível superior, não era uma preocupação do país. Também a Reforma de 1982 apresentou um núcleo comum e obrigatório no nível nacional, e um currículo diversificado. Havia um corte elitista nas escolhas que o país fez? Por quê?
Na história da educação brasileira é notável, de maneira triste, claro, a impermanência e a precariedade constante que marcam a institucionalidade dos modelos educacionais brasileiros. Nos tempos coloniais, os jesuítas, que constituíam a espinha dorsal da escolaridade até a metade do século XVIII, foram defenestrados da Terra Brasilis em 1759, deixando para trás um apagão educacional que produziu marcas profundas no desenvolvimento da sociedade brasileira. No século XIX, surge aos poucos um ensino superior embrionário e pragmático, para não dizer utilitário, voltado às carreiras de Estado, algumas dessas ainda hoje figuram dentre as mais concorridas nos concursos vestibulares. Esses primeiros cursos superiores públicos foram criados na forma de faculdades isoladas sob a batuta de D. João VI e D. Pedro I. Quando Dom Pedro II quis inaugurar uma universidade no Rio de Janeiro, em 1870, ele foi impiedosamente combatido pelos positivistas comteanos que consideraram um absurdo criar uma universidade se não havia educação básica e reinavam altíssimas taxas de analfabetismo (que ainda hoje, em pleno século XXI, incide em mais de 10% da população brasileira). Sem dúvida, um erro memorável dos discípulos de Augusto Comte que não se deram conta de que para haver um sistema educacional funcional e eficaz precisa-se formar bem e muito bem professores de todas as áreas do conhecimento. As humanidades, por exemplo, só foram estudadas sistemática e seriamente no século XX, com o advento das primeiras universidades. Enquanto na América Espanhola houve universidades desde o princípio do processo colonial, no Brasil nossas universidades mais longevas estão completando, nesta e na próxima década, seu primeiro centenário. Mas esse cenário desolador não era de todo ruim na ótica das elites, pois elas o remediavam recorrendo à formação no Exterior.
Há certo elitismo nas escolhas que o país tem feito ao longo de sua história, mas há, no fundo, um processo de segregação social que se deriva da escravidão e visa sustentar a exploração da mão de obra e que é reproduzido sistematicamente pelas políticas educacionais. Há momentos da história em que se avança na direção de uma perspectiva mais inclusiva, mas logo retrocedemos àquilo que no fundo interessa a um projeto de país segregado desejado pelas elites (que tem decaído consideravelmente em seu nível intelectual e em sua humanização, infelizmente) e à ideologia, que, por conseguinte, apresenta-se profundamente arraigada no imaginário de diversos setores da população, com destaque para as classes médias: a ideia é manter as coisas tão desiguais como sempre foram. Filmes como Que horas ela volta? (Pandora Filmes, 2015) ilustram muito bem esse tipo de situação. Nesse sentido, a educação básica (ensino fundamental e ensino médio) sofre todo tipo de experimentação há décadas. Mais recentemente, temos assistido à ingerência de instituições privadas interessadas em influenciar a tomada de decisão e desorientar as políticas educacionais. A meu ver, trata-se de uma infiltração de perspectivas nocivas à sociedade e que não defendem que o pobre e o rico tenham acesso à mesma formação básica. Sem uma educação pública forte, que difunda valores citadinos universais e democráticos, não há país quanto menos nação.
As reformas educacionais de 1972 e 1982 implementaram um modelo que mantinha a lógica da divisão do trabalho, reproduzindo a segregação presente na sociedade brasileira. Claro que há exceções – houve pessoas que puderam enveredar por um roteiro diferente deste –, mas a preparação para cursar as carreiras de melhor remuneração e maior status social estava reservada a estratos sociais mais elevados. Para as camadas populares, uma educação técnica era a forma mais disponível. Sabemos que há pendores pessoais e que algumas pessoas não são afeitas a estudos demasiadamente teóricos, que tem disposição para saberes aplicados e o aprendizado de técnicas. A questão é que essa escolha, qual carreira seguir, qual caminho trilhar, deveria competir ao indivíduo não a um modelo que aliena, sobrepõe e impõe essa decisão fundamental à revelia do projeto de vida individual.
A LDB, Lei nº 9394/1996, procura superar essa dicotomia entre esses universos formativos. E embora essa proposta, que inicialmente excluía a Filosofia e a Sociologia como saberes fundamentais à formação, relegando-os à transversalidade, foi pouco a pouco sendo ora aperfeiçoada, ela acaba por sofrer um golpe mortal com o novo ensino médio. A partir de agora abre-se um abismo entre os sistemas público e privado. Fica a pergunta: por que os estabelecimentos de ensino privados simplesmente não adotam os experimentalismos educacionais que afligem os estudantes dos sistemas educacionais públicos?
2. O sociólogo Darcy Ribeiro disse ser a “crise na educação não uma crise, mas um projeto”. Ao falar de reforma no Ensino Médio estamos falando exatamente de que tipo de política pública, e como ela se articula com o processo de globalização? Poderia nos explicar?
Curiosamente, Darcy Ribeiro foi o relator da LDB de 1996. É uma lei mais moderna que sua antecessora (urdida no âmago da ditadura militar) e introduz uma série de inovações positivas no sistema educacional brasileiro. Todavia, ela também reflete, tenho a impressão, alguns preconceitos do relator, por exemplo, uma posição contrária ao ensino obrigatório da Filosofia. Então é surpreendente que ele, um antropólogo, com a formação humanista que detinha, tenha relegado a Filosofia e a Sociologia a um papel secundário na organização do Ensino Médio na LDB.
A crise é a constante no plano educacional. De fato, quando vemos a falta de investimento, a precarização da formação dos quadros da educação (com o avanço da educação a distância que abrange 80% das licenciaturas e 90% dos cursos de Pedagogia do país) e uma série de outras políticas, revivemos o projeto de crise constante na educação.
É curioso que, sistematicamente, não se ouçam os professores. Imagine se médicos e enfermeiros não pudessem opinar sobre como se deve operar um hospital? Ou se a OAB não participasse dos debates sobre o aprimoramento e a operação do sistema de Justiça? Não seria um absurdo? Há gestores públicos que se orgulham de não receberem em seus gabinetes os pleitos do magistério; mas as portas desses mesmos palácios estão sempre abertas aos mecenas da educação. Então há dois pesos e duas medidas. Isso dá conta do tipo de prioridade que se tem. Por outro lado, as categorias do magistério são instruídas, então são interlocutores mais exigentes. Mas o fato é que não se ouve quem atua no magistério e suas opiniões não valem o mesmo que a dos consultores de institutos privados que negociam o futuro da educação. Em suma, no processo da globalização estar mal preparado é muito ruim. O nível de instrução rebaixado e resultados educacionais pífios não servem a bons propósitos, nem na política nem na economia.
3. Agora, falando especificamente do Ensino Médio: em 2017 foi implementada uma reforma, alterando a base curricular. À reforma de 2017 segue-se esta, do NEM, de 2023. Considerando uma perspectiva globalizante, no que elas se diferenciam, e por qual motivo a de 2023 é mais perniciosa para a formação dos jovens?
Eu considero o novo ensino médio uma pá de cal na formação dos jovens, com todas as consequências que isso traz para a sociedade, inclusive na economia. Se temos o desafio de modernizar as relações, as técnicas e os processos produtivos, não há vantagem em um indivíduo mais mal preparado. Isso é insano. Conhecimento sempre ajuda. Mas veja que a carência de boa base educacional será mais profunda entre os mais pobres, com menos acesso às oportunidades e maior dependência dos serviços públicos (que deveriam ser padrão ouro de serviços, como ocorre na educação superior), e isso mantém o país pequeno, segregado em guetos de pobreza de um lado e de oportunidades de outro e isso afeta, principalmente, os estudantes da educação pública e atrasa o desenvolvimento da nação.
Veja que seria possível diversificar e enriquecer a formação juvenil no Ensino Médio, mas isso deveria ser um adicional, não algo que substitui o currículo convencional. Os roteiros formativos deveriam significar mais aulas de língua portuguesa, de língua estrangeira, de história, de geografia, de filosofia, de sociologia, de matemática, de física, de química, de desenho geométrico, de artes, de educação física. O que ouvimos dos estudantes de ensino médio é estão frustrados com um currículo água com açúcar que é tudo, menos vocacionalmente orientado. Eu mesmo quando ouvi falar da proposta achei que poderia ser interessante, mas ela está mal orientada e está rebaixando ainda mais o nível do ensino e da aprendizagem. Um sistema de ensino pode atender a outros objetivos, mas se não há progresso no ensino e na aprendizagem, o modelo implementado no sistema está fadado ao fracasso. Em breve, muito em breve, as instituições de ensino superior não conseguirão cumprir o seu papel de difundir e criar conhecimento em alto nível, e isso será um precipício para a inteligência nacional. Vista sob essa perspectiva é absurdo que tenhamos demorado tanto para ter um sistema educacional de acesso praticamente universalizado (quase 500 anos!), mas sem qualidade suficiente para alavancar e sustentar as conquistas sociais, econômicas e políticas da sociedade.
4. Concretamente, há relatos da implementação da reforma? O que os caracteriza? Como os jovens – e os professores estão percebendo o processo? Por que a sociedade parece indiferente a isso?
Sim, há muitos relatos, a grande maioria dando conta de aspectos negativos do novo ensino médio. E da parte dos envolvidos no sistema educacional (diretores, pedagogos, professores, estudantes e famílias) os relatos são bem negativos. Nota-se que tal como está o estudante de escola pública não terá a menor chance de ingressar em cursos superiores públicos de qualidade, ou se ingressar, poderá enfrentar enormes dificuldades de concluir a contento o curso da carreira escolhida. Não esqueçamos que as taxas de evasão no ensino superior brasileiro já são muito altas, em torno de 50%. Esse cenário tende a piorar.
A meu ver, o novo ensino médio não servirá para nada positivo. Não é à toa que estudantes, pais e professores não estão satisfeitos com o modelo. Para os professores esse modelo é o golpe de misericórdia na escolarização sistemática, uma afronta e uma desregulamentação das carreiras do magistério. O novo ensino médio não está proporcionando aprofundamento nos roteiros formativos escolhidos. Em vez disso, tem incluído temas exóticos, atende mais aos gestores dos sistemas públicos e privados que tem dificuldade de recrutar professores com formação específica, de qualidade e boa diplomação. Assim, o novo ensino médio parece atender mais à realidade da falta de professores habilitados do que a um projeto pedagógico realmente sensato. Receio que a longo prazo, tenhamos um déficit simbólico e cognitivo imenso, com indivíduos que estarão despreparados para seguir com os desafios de suas vidas, de suas carreiras e a abraçar oportunidades profissionais. Infelizmente, eles poderão estar menos aptos a compreender a complexidade da vida social, do universo do trabalho, da participação política e a lidar com os dilemas da próprios da existência humana.
Quando recebi em minha casa um exemplar dos novos livros didáticos do novo ensino médio, lembrei-me imediatamente dos livros de estudos sociais do tempo da ditadura: cheios de imagens e vazios de conteúdo. Algo como comida ultraprocessada, pode até agradar a alguns paladares, mas é completamente imprópria para a saúde. Esse tipo de material atenta contra a inteligência de estudantes e, sobretudo, de professores. Há estados da União em que a gestão educacional está uniformizando as aulas e os processos e métodos educacionais, tornando professores meros autômatos que não são mais requeridos a criar suas aulas. Desaparece a criatividade docente. As aulas ficam piores. O aprendizado empobrece e desaba. Há também desafios que emergem da sociedade, mas o novo ensino médio como está não é a alternativa. Novamente: por que os sistemas educacionais privados não estão adotando os experimentalismos que encontramos nos sistemas públicos?
Para resumir a situação: houve propaganda, propaganda enganosa. Fez-se alarde de um modelo que quando foi implementado resultou em um rebaixamento do que havia, com muito mais perdas do que ganhos. Mas não é só uma questão de divulgação: o novo ensino médio é um modelo ruim, perverso, segregador, desidratado, utilitário, raso e, sobretudo, perigoso. Enquanto não considerarmos seriamente que a maior riqueza de uma nação são as pessoas e não as riquezas naturais de um país, e que devemos fazer de todo o possível para desenvolvê-las, estaremos condenados a não ter um futuro de que nos orgulharemos.